sexta-feira, 15 de junho de 2007

Entrevista com Leila Míccolis

(por Márcia Sanchez Luz)



Nutro por Leila um carinho especial, o que se deve a inúmeros fatores. Não posso deixar de mencionar sua generosidade em nosso primeiro contato: no final de 2006 mandei um e-mail para a Editora Blocos Online, dizendo que eu era poeta, mas que sempre preferi ficar no anonimato; é claro que, naquele momento, já havia mudado de opinião! Entretanto, não tinha a mais vaga idéia das conseqüências daquela minha atitude. Depois de uns dias, recebi um e-mail de Leila Míccolis, pedindo que lhe enviasse alguns poemas, os quais foram logo publicados.


Leila Míccolis, escritora brasileira da geração poética de 1970, prosadora, escritora de cinema, teatro e televisão, Mestre em Ciência da Literatura/Teoria Literária pela UFRJ, trinta livros editados em poesia e prosa, obras publicadas na França, México, Colômbia, África, Estados Unidos e Portugal, teatróloga, roteirista de cinema e escritora de telenovelas, ainda co-edita, com Urhacy Faustino, o portal Blocos Online.


Sim, capaz de todos estes e outros feitos, e com toda esta carga de trabalho, Leila ainda encontra forças para ler e-mails, mesmo que de desconhecidos!


Nasceu, então, uma amizade sincera e deliciosa! Leila é a Pequena Notável, não só da Literatura, mas da vida. Dona de uma honestidade que pode até machucar, foi conquistando meu coração – não sei lidar com mentiras! Prefiro a verdade que machuca à mentira que me desacata, como também transpareço meus sentimentos sem precisar dizer uma única palavra; basta meu olhar. E acredito que, se todos se dessem a chance de lidar simplesmente com a verdade, tudo na vida ficaria mais fácil.
Em Leila tudo é intenso, nada fica sem acontecer quando passa por ela.



M.S.L.: Leila, seu perfil é o de uma mulher desbravadora, contestadora, crítica. Em quais de suas obras isto está mais evidente? Ou você evidencia seu modo de ser e ver o mundo em tudo o que cria?

L.M.: Sou dessas escritoras que não separam vida e obra, embora, nesta última, haja grandes doses de ficção. Sempre me interessei pela crítica e questionamento das “verdades imutáveis”, dos papéis sociais, dos padrões de comportamento, da hipocrisia e de uma realidade feita apenas de ilusões e aparências e esses temas recorrentes acabam por perpassar também minha literatura.


M.S.L.: Sei que escreve desde os três anos de idade. Àquela época, qual era o “motor propulsor” de suas criações?

L.M.: O “motor propulsor” foi humano: minha mãe, que era diretora de escola primária, pintora e escritora, desde cedo me incentivou, contando histórias, dando-me livros infantis, dialogando comigo. Devo a ela ter-me sinalizado essa maravilhosa trilha e me guiado através dessa estrada.


M.S.L.: Como foi criar em tempos de Ditadura Militar? De que forma seus poemas refletiam denúncias contra o governo?

L.M.: Costumo dizer que meu tipo de literatura não conquista amigos com facilidade, porque minha ironia poética incomoda, mesmo que faça sorrir... Então, antes, durante e depois da Ditadura ela sempre foi aceita com reservas, por ser do tipo transgressora. Os poetas da Geração 70, na época da Ditadura, devido à censura declarada, tornaram-se metafóricos ou eram considerados “desbundados”, o que para muitos soava como sinônimo de alienação, quando, em verdade, tratava-se de uma postura estética deliberada de resistência à ação repressora e repressiva. Não fui por nenhum desses caminhos, continuei no meu, que era mais voltado a debater as convenções sociais que massacram e robotizam as pessoas, inclusive sexualmente. E o mais interessante é que a sexualidade era tão ou mais reprimida e censurada quanto a temática política. A caça aos palavrões e às palavras que eles consideravam ofensivas à moral e aos bons costumes chegava a ponto de, uma vez, o Suplemento de Minas pedir para eu substituir a palavra “sexo” por uma outra mais leve...
Tenho diversos poemas claramente dirigidos ao regime de exceção (ainda mais que, na época, eu estava na Faculdade de Direito, e era impossível ignorar os amigos do CACO sendo mortos ou desaparecendo todos os dias); porém como o que minha poesia discutia e discute, insisto, é a microfísica do poder, existente em qualquer tempo e em qualquer regime político, questionar o poder dominante, na época, era apenas mais um item adicionado à minha imensa lista de outros “podres poderes” autoritários.


M.S.L.: Em geral, a criação se dá a partir da crítica, seja ela consciente ou não. Além da Ditadura Militar, que outras ditaduras produzem em você a necessidade de criar?

L.M.: Não sei se a partir da crítica, mas da consciência crítica, no meu caso (se a crítica não chega a ser consciente, não há como ela expressar-se). Há alguns anos comecei a perceber que minha obra se dividia em ciclos: o familiar, o infantil, o cibernético, o ecológico, o esotérico, o erótico, o GLS, o etílico, o lírico, o “em poucas palavras”, entre outros. Em cada um deles falo das manipulações que nos impingem, tão sutis e já tão enraizadas em nós, que nem as percebemos muitas vezes.


M.S.L.: Em sua trajetória pessoal, encontrou traidores?

L.M.: Encontrei, ainda bem: creio que foi Paulo Coelho no Diário de um Mago que disse que, se não temos um inimigo, acabamos inventando-o... Então, neste sentido, sou grata a eles, por terem sido professores de um dificílimo aprendizado que, sem a ajuda deles, seria impossível enfrentar, entender e avançar.


M.S.L.: Leila, como traçar um paralelo entre a obra “Calabar – O Elogio da Traição”, de Chico Buarque de Hollanda e Ruy Guerra, e a obra “Calabar” de Ledo Ivo?

L.M.: Calabar de Chico e Ruy, como o próprio nome sugere, faz um elogio à traição de Calabar, um militar corajoso que exerceu sua liberdade de opção ao lutar pela colonização holandesa – menos feroz, inclusive economicamente – em vez da portuguesa. É uma peça teatral baseada em fatos históricos. Já Calabar, de Lêdo Ivo, é um poema dramático: nele o plano histórico convive com o mítico na narrativa literária e não há a defesa de Calabar. O julgamento é outro: a de um país que o julgou como traidor, mas que continua traindo – até hoje – os anseios de fartura e felicidade do seu povo. De comum ambos falam de perseguição e de falta de liberdade de expressão, embora de modos totalmente diferentes: Calabar de Chico e Ruy vive no seu tempo e é uma figura que move os conflitos de forma centrípeta. No poema dramático de Lêdo, a ação se passa na contemporaneidade e Calabar nem aparece no palco, embora ele seja a força centrífuga que impulsiona a ação dramática, afastando o debate de si, de sua figura, de seus atos, para outros temas paralelos: miséria, cidadania, papel social do escritor, exílio, alienação, controle, violência, impunidade.


M.S.L.: Por que você escolheu Calabar, de Lêdo Ivo, para sua Dissertação de Mestrado?

L.M.: Porque gosto muito da poesia dele – impactante, forte, polêmica, reflexiva – e porque esta obra rompe com a idéia que temos do épico tradicional, inovando em muitos aspectos, de forma sarcástica, ousada, brilhante, magistral. Trabalhar com Calabar foi um desafio difícil, mas ao mesmo tempo muito estimulante.


M.S.L.: Você mal acabou sua dissertação de mestrado, com louvor, e já a está transformando em livro. Além disso, garantiu seu primeiro lugar para o doutorado. Como está sendo esse momento, levando em conta todo o trabalho em Blocos?

L.M.: Sinto-me extremamente esgotada, mas feliz também, na mesma medida, ainda mais por Lêdo Ivo ter me prestigiado com sua presença, proporcionando-me a alegria de congraçar dois tipos de Academias: a Brasileira de Letras e a de Letras da UFRJ. É muito raro e muito precioso um momento como este.


M.S.L.: Como se dá o processo de transformar um trabalho acadêmico em uma obra literária?

L.M.: Estou habituada a roteirizar livros para cinema ou para sinopses de TV, ou a adaptar peças teatrais para livros, então encaro como mais um trabalho deste tipo. Considero até menos desgastante, porque não se trata de uma transcriação teatral (neologismo criado por Haroldo de Campos e ampliado por Linei Hirsch para designar uma obra dramática proveniente de uma obra literária narrativa), mas de dois tipos de escritas literárias. Então o processo flui de forma mais ágil: basta um trabalho de copidescagem e uma mudança na entoação textual para que a mensagem possa atingir maior número de leitores.


M.S.L.: Fale do livro. Qual é o título? Existe um público alvo? Quem vai publicá-lo?

L.M.: “Passagem de Calabar”. O título é do próprio Lêdo Ivo. Quanto ao público alvo, acho que o público implícito existe sempre em toda obra. O livro dirige-se não só a escritores, intelectuais, professores de literatura, estudantes e leitores amantes da poesia, mas também a pesquisadores – pois minha tese é de que o poema dramático é uma das mais visíveis e exuberantes manifestações do gênero épico contemporâneo (e não um gênero híbrido, misto) – e ainda à classe teatral porque, baseada em Emil Staiger, mostro que os poemas dramáticos patéticos, como Calabar, trazem a referência do palco em sua própria constituição literária. Ambos são indissolúveis: literariedade e palco. Através desta linha teórica, espero, na prática, aumentar o interesse dos diretores nos poemas dramáticos, que até agora têm sido pouco encenados por serem considerados, erroneamente, um “teatro literário”, elitista e textocêntrico.
Quanto à publicação, já contatamos algumas editoras, mas ainda não assinamos contrato com nenhuma, até o momento.


M.S.L.: Valentia, ousadia, destemor: Herança ou Conquista?

L.M.: Sem dúvida, trago muito da herança materna em minha formação cultural, embora esse fabuloso legado já esteja bastante acrescido do que aprendi escrevivendo nestes anos todos. Só não sei é se tenho tais atributos. Vejo-me mais como uma formiguinha (até pela minha estatura) trabalhadeira, que tenta colaborar para uma vida melhor, dentro do que sabe e adora fazer; uma formiguinha telúrica – sem quaisquer super-poderes atômicos, como a Formiga Atômica do desenho animado... Mas... espere: acabo de perceber que cometi uma grave injustiça e quero repará-la a tempo: quem disse que as formigas não são valentes, ousadas e destemidas? Inclusive são mágicas: capazes, em certos momentos, de criarem asas para poder voar - justamente como eu, quando escrevo.


Leila, muitíssimo obrigada por mais esse carinho para comigo. Tenho certeza de que “Passagem de Calabar” será mais um estrondoso sucesso dentre todos os seus.

Para conhecerem mais o trabalho de Leila Míccolis e Urhacy Faustino, acessem http://www.blocosonline.com.br/.

Vale a pena conferir!

Márcia Sanchez Luz

Um comentário:

  1. Minha linda poetisa,

    Tua entrevista é absolutamente perfeita.
    Na forma, no rítmo, no avançar aos poucos, introduzindo o leitor no tema, e não ao tema, neste caso. Produz um mergulho gradativo.
    Não soa, não parece, não faz pensar, em nenhum momento, em uma primeira entrevista.
    Muito ao contrário, parece trabalho de gente grande, de entrevistador de gabarito em programa da BBC londrina.

    De novo, o prêmio do objetivo alcançado, a sensação do trabalho bem feito, merecidamente.
    Clean, revelando a entrevistada aos poucos, formando o personagem esférico, de quem se sabe muito, mas de quem nunca se sabe tudo.
    Leila Míccolis foi sendo desvelada e construida ao longo da entrevista, de forma a que se gerasse a impressão de conhecê-la como se a tivéssemos encontrado pessoalmente, em uma conversa franca e honesta, em uma situação social de intimidade respeitosa.

    Parabéns pela garra, pelo empenho em conseguir o muito difícil, o distante. Parabéns.
    Nossa rica língua não tem palavras mais ricas que "parabéns" para expressar esses cumprimentos de louvor e apreço.
    Parabéns !



    *.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*.*



    Abaixo, um poema que prezo muito.
    Custou-me muito sofrimento escrevê-lo como contraponto de meus sentimentos, muito negativos à época.
    Mas o próprio mergulho poético me permitiu superar o estado emocional. Poema terapêutico.
    Quando a Ana, minha sobrinha, foi para os EUA fazer intercâmbio, eu o reescrevi e o dediquei a ela pelo aniversário.
    Espero que ainda seja atual, para enriquecer mais teu blog.



    ECO PRIMEVO

    PARA ANA, QUE TEM HOJE MAIS UM DIA.

    Jailson F. Sanchez



    Cada palavra que escrevo puxa uma outra, como um comboio que atravessa a ponte.

    E a ponte traz poente, que traz ocaso,

    e a associação criada livremente traz o fim, o nada, o acaso,

    a serpente, a mulher, o cântico dos cânticos.


    E cada novo som produz um eco,

    o mesmo som que se transforma em outro como a Eco,

    desamada por Narciso e que, muda, reconstrói-se a cada toque

    e é ela própria narcísica na auto-projeção.


    Então vejo uma gota d'água e todo o universo que contém.

    Vejo os dentes do meu cão, de madrugada, e vejo as estrelas também,

    vejo o som de uma rima elaborada, cruzada, e digo amém,

    reconhecendo a eterna encruzilhada entre o aquém e o além.


    Eu sou.

    Através de cada rima, de cada som, eu sou !

    E muito depois que morrer a língua em que foram escritos estes versos, como queria Pessoa,

    ainda ecoarão in-fi-ni-te-si-mal-men-te as vibrações destas palavras em cada partícula do cosmos.


    Um som terá se transformado em uma perturbação,

    que incorporada a todos os movimentos, fá-los-á diferentes do que eram.


    E com o passar das eras este som será a origem e o motivo de algo.

    Algo que pode, eventualmente, ser um novo carrossel do eterno retorno,

    onde todos os ecos são ecos e cada som é um novo som.


    Eco-som !

    Ergo sum !


    Mergulho mais uma vez nas profundezas do mármore que gera o eco.

    Que mármore é esse ? Onde sua estrutura ?

    O que reconstrói o som e forma o eco ?

    No fundo do mármore profundo não há mais mármore.

    Há apenas sons.

    O som não ecoa no mármore, o som ecoa no som.

    O devir é o produto dialético dos sons que fazem eco entre si.

    O existir é um som síntese.

    E, como na vida biológica, o ser é o resultado do encontro.

    Anti-entropicamente, o enunciado da terceira lei da termodinâmica,

    ao ser proferido, desfez o caos e produziu novos encontros.


    Essa é a poesia da SCIENTIA.

    A poesia que vai além do ritmo,

    que encontra, ela própria - no encontro dos sons -

    a origem última de tudo o que existe.


    E assim se revela a beleza do ser.


    La parole, the word, la parola, la palabra,

    todo es igual y todo es distinto.

    All the sounds together and around out,

    Tutte le cose con la stessa melodia,

    Tous les langages remplis d'un propos.


    Mein Weltanschauung !

    O belo através da fala masculina que constrói no receptáculo feminino do cosmos.


    L'Opera Prima !


    Bravo ! Bravo ! Bravo !


    Benditos sejam todos os tambores da aurora dos tempos ...


    31/Mar/1999

    Postado por Jailson no blog MÁRCIA SANCHEZ LUZ em 17 de Junho de 2007 07:24

    ResponderExcluir